domingo, 28 de junho de 2009

Vida – mas não como a conhecemos


Ao contrário do que o título acima pode dar a entender, gentil leitor, esta não é uma coluna sobre vida extraterrestre. (Calma, elas virão.) Mas, em sentido amplo, poucas coisas são mais alienígenas do que a forma de vida sobre a qual este texto versa. Imagine que um pedaço do seu organismo resolva proclamar sua independência do resto do corpo e adquira a capacidade de saltar para outras pessoas, num estilo de vida que lembra o de um parasita. Centenas de anos depois, seu corpo “principal” já terá virado pó, mas esse fragmento rebelde do organismo original alcançou o que só podemos definir como imortalidade.

Esse cenário de ficção científica ainda – e acho bom frisar o “ainda” aqui – não foi registrado em humanos, mas espécies como cães, diabos-da-tasmânia (o felpudo e ranzinza marsupial da foto acima) e hamsters parecem sentir na pele os efeitos dele. Muitos desses bichos são portadores de cânceres que deixaram de ser uma doença “interna” para assumir uma nova condição, bem mais perigosa. Tais tumores atípicos não apenas se espalham pelo organismo de seu portador como também infectam outros indivíduos, como se fossem bactérias ou outros causadores de doenças mais convencionais.

O mais maluco é que é possível traçar a linhagem desses tumores parasitários, como se eles fossem qualquer outro tipo “regulamentar” de ser vivo. Considere o caso do CTVT (sigla inglesa para “tumor venéreo transmissível canino”), também conhecido como sarcoma de Sticker. O CTVT foi diagnosticado pela primeira vez em 1876 e, como o nome diz, passa de cachorro para cachorro principalmente por meio da atividade sexual. Mas, no século XIX, havia pouquíssimas ferramentas de laboratório para entender, em detalhes, como a transmissão acontecia.

Conforme a biologia molecular avançava, foram se acumulando os indícios de que eram as próprias células tumorais que saltavam de cão para cão, e não algum agente infeccioso que, mais tarde, causaria a doença. Uma equipe coordenada por Robin Weiss, do University College de Londres, deu forma definitiva a essa hipótese alguns anos atrás, ao analisar o DNA das células de CTVT extraídas de 40 cães em cinco continentes. Resultado mais acachapante de todos: o material genético dos tumores NUNCA bate com o dos cachorros portadores e SEMPRE bate entre si.

Ataque dos clones
Em outras palavras, todos os exemplares de CTVT são integrantes de uma população de clones tumorais, dotados de aberrações genéticas características que são compartilhadas apenas entre eles. Todos parecem descender de um conjunto ancestral de células tumorais, embora, com o passar do tempo, novas rodadas de mutação no DNA fizeram com que os CTVTs se dividissem em duas subpopulações. O fenômeno é igualzinho ao que aconteceria se uma bactéria-mãe começasse a se reproduzir de forma assexuada e, com o passar do tempo, as bactérias-filhas e bactérias-netas divergissem geneticamente entre si.

O mais provável é que o primeiro animal a desenvolver o tumor – possivelmente um lobo ou uma das raças asiáticas de cão mais próximas dos ancestrais lupinos, a julgar pelos padrões de diversidade genética do CTVT – transferiu algumas células de câncer a uma fêmea durante o empolgado ato sexual canino, no qual a interação entre o pênis e a cavidade vaginal é prolongada e relativamente violenta. (Trocando em miúdos: aquela coisa de os cachorros ficarem “grudados”, sabe…)

O macho seguinte a se aventurar com a cadela infectada espalhou a doença para suas próximas parceiras – e o resto é história. Aliás, história um bocado antiga: ainda de acordo com os padrões de mutação e diversidade genética dos tumores, pode ser que eles estejam circulando entre 200 e 2.500 anos (a margem de erro, infelizmente, não é lá essas coisas).

Diabos em risco
Ainda mais assustador é o tumor facial que está dizimando as populações de diabo-da-tasmânia, o mamífero que inspirou o célebre Taz, na Austrália. O tumor forma enormes ulcerações no focinho do bicho e acaba levando os portadores à morte. Algumas populações da espécie já perderam 90% de seus indivíduos, de forma que, se a maré não virar logo, o animal pode desaparecer do planeta.

Anne-Maree Pearse, do Departamento de Indústrias Primárias, Água e Ambiente australiano, também conduziu uma análise genética desses tumores faciais, concentrando-se no cariótipo (o conjunto dos cromossomos, aquelas estruturas enoveladas que abrigam o DNA debaixo de um “colchão” de proteínas). Bingo: apareceu a mesma diferença entre o cariótipo do portador da doença e o cariótipo do tumor, e a mesma identidade genética entre os vários tumores.

As alterações nos cromossomos das células tumorais são tão complexas e constantes que seria altamente improvável que um mesmo ciclo de mutações aconteceu em todos os animais; é bem mais lógico postular a transmissão de pedaços do tumor de vítima a vítima, mesmo porque um mecanismo para isso está na cara: mordidas. Famosos pela agressividade e pelo apetite carnívoro, os diabos-da-tasmânia de ambos os sexos brigam ferozmente na época do acasalamento, e sua principal tática é morder o focinho dos adversários.

O câncer que virou parasita é um desafio tão grande para a espécie que seu espalhamento está induzindo mudanças evolutivas: antes raras, as diabas-da-tasmânia capazes de ter bebês com apenas um ano de idade, e não só após dois anos, ficaram 16 vezes mais comuns em certos locais depois de apenas algumas temporadas da epidemia.

Novos replicadores
Talvez seja bom parar e refletir um minutinho sobre as consequências desses fenômenos amalucados. Para ser mais específico, quando se considera a natureza essencial dos seres vivos como replicadores – ou seja, de coisas que se replicam, ou produzem mais cópias de si mesmas, que por sua vez produzem mais cópias ainda, e assim por diante –, acho bem difícil refutar a hipótese de que esses tumores se tornaram uma nova forma de vida, ou ao menos estão em vias de fazê-lo.

Isso porque, além de usarem outros organismos como plataforma para se replicar – exatamente como parasitas mais convencionais fazem –, eles parecem ter adquirido uma identidade genética única. O conteúdo de sua replicação, em outras palavras, não pode mais ser confundido com o de um cachorro ou o de um diabo-da-tasmânia “natural”, e a tendência é que se torne cada vez mais específico e idiossincrático ao longo de gerações e gerações de novos tumores.

Como vemos no caso dos marsupiais australianos, a interação dos tumores com os animais está tendo um impacto considerável sobre a dinâmica da seleção natural dos diabos-da-tasmânia, mas a recíproca também é verdadeira. Não é inconcebível que, para “sobreviver”, os tumores faciais fiquem menos agressivos – é o caso dos CTVTs hoje, que não só não matam seus hospedeiros caninos como normalmente desaparecem espontaneamente, não sem antes pular para um novo animal. Nesse caso, a seleção natural atua sobre os tumores assim como atua sobre qualquer outra espécie.

E, se você está achando que, apesar de curiosíssimo, o fenômeno não serve para nada, pode estar redondamente enganado. Os tumores só se espalham entre os diabos-da-tasmânia, aparentemente, porque o sistema imune da espécie é muito uniforme, o que impede que o tecido estranho seja rejeitado. Já entre os cães, o CTVT parece ter a capacidade de modular as defesas do organismo, sendo assim aceito. Em outras palavras, é uma forma natural de transplante, altamente bem-sucedida. Quem precisa se adaptar a um órgão oriundo de outra pessoa talvez possa receber uma mãozinha involuntária dessas novas e bizarras formas de vida, no futuro. Não custa tentar entendê-las.

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