segunda-feira, 27 de julho de 2009

Vaslav Nijinsky


Gênio da dança com a alma de um fauno

Um deus de sapatilhas nasceu aqui.
Por onde passou, deixou rastros de perfeição artística e de sonhos desfeitos.

Polêmico, atormentado, genial e esquizofrênico, o bailarino russo Vaslav Nijinsky traz em sua biografia os ingredientes exatos para compor à perfeição o perfil de um personagem romântico. Dono de uma personalidade ambígua, para dizer o mínimo, o mesmo Nijinsky que escandalizava as platéias com a ousadia de sua arte mostrava-se, fora dos palcos, uma criatura frágil e dependente. Um deus de sapatilhas que jamais soube conviver com as limitações impostas pela convivência social.

Nascido em 1888, Nijinsky iniciou nas aulas de ballet aos 9 anos, levado por sua mãe. O primeiro papel de destaque veio aos 18 anos, em Le Pavillon d’Armide. Em 1908 é apresentado ao empresário e diretor de balé Sergei Diaghilev (1872-1929), através de seu então namorado, o príncipe Pavel Lvov.

Carismático e de forte personalidade, Diaghilev dirigia com mão de ferro o Ballets Russes, criado por ele em 1909 com o objetivo de sacudir o marasmo que acreditava haver feito o ballet estacionar no tempo. O empresário, que sonhava com a europeização da dança russa, utilizava àquela época o talento do coreógrafo Michel Fokine (1888-1942), dos cenógrafos Leon Bakst /1866-1924) e Alexandre Benois (1870-1960), e dispunha de estrelas de primeira grandeza, como a legendária Anna Pavlova (1881-1931).

A apresentação a Diaghilev – um divisor de águas na vida de Nijinsky – causou forte impressão no rapaz, que escreveu mais tarde em seu diário: “Não gostei dele por sua voz segura. Evitei fazer amor com ele mas fingi, porque sabia que, de outro modo, minha mãe e eu morreríamos de fome”. Há quem duvide da afirmativa, uma vez que o testemunho de Nijinsky foi cunhado quando o bailarino já apresentava distúrbios mentais. Há de se observar, também, que o relacionamento com Diaghilev havia sido marcado por paixão e desespero. O rompimento com o empresário é freqüentemente apontado como a causa que desencadeou o processo de desequilíbrio que arrastou ao limbo o maior mito da dança de todos os tempos.

A personalidade de Diaghilev não permitia que se lidasse com muita facilidade com o empresário. Incensado por seus contemporâneos – sua companhia excursionava por todo o mundo e recebia colaborações de mestres como Claude Debussy, Maurice Ravel e Albert Roussel – , corre a lenda de que Diaghilev tinha verdadeiro horror a doenças e tomava cuidados extremos para não se contaminar: vivia a limpar as mãos, não permitia que seus lábios fossem beijados e usava um lenço imaculadamente limpo para proteger a face. Também é notório o pavor que sentia de viajar em navios. Por haver uma cigana previsto que morreria afogado (o que efetivamente acabou ocorrendo), Diaghilev evitava a qualquer custo aventurar-se ao mar.

Quando a Nijinsky, apesar de fora dos palcos mostrar uma personalidade frágil, que buscava o apoio de Diaghilev (e mais tarde da mulher, Romola) para decisões mínimas, revestia-se de força descomunal ao encarar a platéia. Aliado a uma técnica perfeita, que mantinha hipnotizados os espectadores de sua dança, o carisma do bailarino deu ensejo a transformações significativas no panorama do ballet de seu tempo.

“Dançar é estabelecer um contato visceral com forças misteriosas da natureza; é chegar às máximas possibilidades de articulação do corpo humano em harmonia com os sons em volta. Dança é, muita além disso: acompanhar a música interior que torna divino o meramente humano, é ser ao mesmo tempo deus e demônio, pela sublimidade do movimento”

(Adler Stern)

Nijinsky amava um sonho

Seu maior triunfo foi elevar a figura masculina à mesma altura que o elemento feminino nos balés. Em alguns casos, tanto engenho e arte foram premiados ao manter cativos os olhos do público. O primeiro papel de destaque de Nijinsky depois que conheceu Diaghilev foi como Albrecht, em Giselle, que estreou em Paris em 1911. Com o mesmo papel o bailarino protagonizou seu primeiro escândalo: instado por Diaghilev, Nijinsky dançou sem o calção que cobria seu leotard (a malha justa usada pelos bailarinos). A performance ocorreu em São Petersburgo, em apresentação a que estava presente a família imperial.

O coquetel teve efeito imediato e custou a Nijinsky, logo no dia seguinte, sua demissão do corpo de ballet do teatro Mariinsky. O mais renomado biógrafo do bailarino, Richard Buckle, acredita que o episódio pode ter sido um ardil de Diaghilev para que Nijinsky perdesse o emprego e se tornasse exclusivo dos Ballets Russes.

No período em que trabalhou exclusivamente para Diaghilev, Nijinsky protagonizou alguns dos mais importantes ballets do inicio deste século. Quase todas as peças eram de autoria de Michel Fokine, então no auge da carreira: Le Espectre de la Rose, Petrushka, Daphne e Chloé, Narciso e Le Diesu Bleu (esse com libreto de Jean Cocteau). Foi um período de glória, com uma sucessão de excursões e êxito. Encorajado por Diaghilev, por quem mostrava verdadeira adoração, Nijinsky decide que as coreografias de Fokine já não suprem sua alma sedenta de novas experimentações e passa a criar seus próprios ballets. Indignado, Fokine abandona os Ballets Russes.

As três coreografias assinadas por Nijinsky – “L’Après Midi d’un Faune”, “Jeux” e “A Sagração da Primavera” – revolucionaram os círculos ligados à dança. L’Après Midi d’un Faune causou um escândalo sem precedentes ao ser apresentada em Paris a 13 de maio de 1912. O público que naquela noite foi ao Théâtre du Châtlet para assistir à estréia de Nijinsky como coreógrafo teve motivos de sobra para surpreender-se. Primeiro porque L’Après Midi mostrava uma sensualidade quase afrontosa para os padrões da época e depois porque rompia violentamente com as características fundamentais do ballet tradicional: em vez de tentar aprisionar os espectadores também com o olhar, nenhum dos bailarinos olhava de frente, todos mantinham-se de perfil diante da platéia, tratada com indiferença pelo coreógrafo. Mesmo a mudança de direção não fazia com que os espectadores pudesse contemplar os rostos: os bailarinos, com rápidos movimentos, trocavam o perfil esquerdo pelo direito. A sexualidade transbordava do fauno protagonizado por Nijinsky que, entretanto, em nenhum momento dava mostras de gestos sensuais, nem mesmo chegava a tocar as ninfas/bailarinas que lhe desatavam as amarras da imaginação. Mas por uma técnica quase sublime, o desejo do fauno é sensível. O fogo que lhe percorre as veias não está atestado senão por um sorriso de lascívia quase imperceptível, mas há paixão, há sexo e uma ousadia suprema. Volúpia de sonho e delírio. Audácia. Nijinsky escancara o rosto debaixo da máscara, revela a sensualidade escondida, abre as janelas. O final do ballet, com o bailarino simulando masturbar-se no palco, entrou para a história como o maior escândalo da dança neste século.

As outras duas coreografias – Jeux, sobre uma partida de tênis, e A Sagração da Primavera - não tiveram o reconhecimento que o bailarino esperava. Nesta última, sobre a música do genial Igor Stravinsky, Nijinsky elaborou uma coreografia que é sua mais arrojada criação. A história do sacrifício de uma virgem aos deuses russos não é aceita com facilidade pelas platéias acostumadas a aplaudir o estritamente conhecido.

Em setembro de 1913, os Ballets Russes excursionam pelo Rio de Janeiro e Buenos Aires. Por ser uma viagem marítima, Diaghilev não veio. Atormentado pelos ciúmes, Nijinsky casou-se precipitadamente com uma das bailarinas da companhia, Romola de Pulszky, mulher determinada que passa então a controlar a vida do marido.
Ao saber da notícia, Diaghilev demite Nijinsky, dando ensejo aos problemas mentais do bailarino. A tentativa de Nijinsky de montar seu próprio grupo sucumbiu 16 dias após o início. Durante a I Guerra Mundial esteve internado em um campo de concentração na Hungria, de onde só saiu em 1916 por intercessão de Diaghilev. Dançou pela última vez em 1919, aos 29 anos. A aceleração de seu desequilíbrio mental fê-lo sofrer por aproximadamente dois anos antes que a morte viesse estender-lhe braços amigos.

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